sábado, 24 de março de 2012

ESCOLHIDAS A DEDO

Deletou a folha branca da tela. Dava nos nervos não poder arrancar a folha em branco da máquina, amassar e jogar no lixo debaixo da mesa. Tem folhas que não aceitam histórias. Nasceram para ser brancas e morrer brancas. Que pelo menos morram amassadas essas malditas que são papel pela metade.

Era apaixonado por papel desde pequeno. Adorava a textura, o cheiro, com linhas, sem linhas. Amava alucinadamente olhar de perto a marca da esferográfica espalhando tinta por aquele universo inacabável.

As folhas eleitas para histórias não servem para pintura. Papel não pode ser preconceituoso, tem que aceitar qualquer tinta. Algumas não entendiam esse princípio e precisavam ser descartadas. Como uma seleção do que presta o que não. Folha branca que escolhe seu papel não versa. Tem que ser inerte, pura, e aceitar de pernas abertas caneta ou pincel. Sexo no papel.

Talvez o papel fosse puro demais para as letras pervertidas que ele queria escrever. Não usaria seu idioma. Ia escrever a língua dita no corpo. Teclas escolhidas a dedo nos pêlos, gemidos,nomes e sinais dos picos. Linguagem de surdo mudo para falar na sua pele. Dedos incapazes de contar aquela história no teclado. As teclas dela eram mais quentes e úmidas. Desistiu.

Abandonou na mesa a história, a folha, o teclado, o cigarro mal feito, a xícara com um dedo de café frio, e foi procurar na cama um jeito dela não esquecer o êxtase daquele conto.

domingo, 18 de março de 2012

TATEANDO NO ESCURO

Desesperou-se quando abriu os olhos e não viu nenhuma luz. Escuro absoluto. As pernas dos olhos não se mexiam mais. Estava paralítico da visão. Tateou e encontrou as paredes nas pontas dos dedos. Podia se mover. Violino e bandoneon. Ouvia pelos poros.

Não se lembrava muito bem de como tinha ido parar ali, mas lembrava dela. A boca de algodão passeando por seu corpo ao norte. Seios firmes e arrepiados acompanhavam a circulação enquanto o calor do miolo das coxas molhava as dele. Contorção retorcida na coluna.

Desdobrou os joelhos para cima acompanhando o desenho liso das paredes em vê. Três passos e bateu num móvel baixo. Talvez a cama estivesse ali perto. Talvez fosse o quarto. Talvez ela estivesse ali. Talvez fosse uma brincadeira. Talvez tenha sido o ácido lisérgico. Estava simulando esquizofrenia, ou estava seu cérebro mais acessível?

Abaixou-se e descobriu o lençol e o travesseiro. Acalmou-se por um momento pois seu corpo já estivera ali, talvez. Tateou pelo espaço e encontrou o desenho macio e redondo de sua bunda debaixo de uma pele de tecido frio. Suou.

Subiu a mão vagarosamente pela cintura que ele havia apertado com as palmas, a lateral do seio completo e pelo ombro delicado de gente pequena, buscando encontrar seu pescoço com as unhas e sua boca com a língua.

Morreu catatônico quando sentiu seu beijo gelado e a falta de alma em seu corpo.

terça-feira, 13 de março de 2012

VOLTANDO PRÁ QUALQUER LUGAR

Estava voltando para qualquer lugar naquela hora. Eram duas e quarenta da madrugada e ele estava arrumando as malas para caminhar só de ida. Travesseiro, os casacos pendurados nela, as havaianas e as facas da cozinha, afinal eram dele e era mais seguro.

Que mais? Separou os livros de arte pois havia um vínculo afetivo. O violão que morava no sofá, roupas de cama e a cama iria buscar no dia seguinte. Também era dele. Ela que comprasse uma nova ou mandasse buscar a velha na casa da mãe. O colchão havia sido o motivo da briga. Ele tinha dormido com muitas naquela cama e ela queria uma nova. Ele havia comprado o colchão há apenas seis meses. Quem ama não faz isso?

As fotos ela mandava depois num pen drive. Deleta. Ela estava separando um monte de caixas. Ele nem sabia que tinha caixas de coisas. Colocar aquilo tudo no carro não seria fácil, mas foda-se. Caminho sem retrovisor.

Engole o espelho e se olha por dentro. Estilhaça. A beleza acabou quando ela cravou as unhas em seu rosto e guardou as mãos no bolso com carne presa nos dedos. As marcas dela estavam no sangue dele. As dele nos pêlos dela. Lavar o cheiro com água era fácil. O problema era tentar apagar as digitais que ele deixou entre suas pernas.

Escova, pasta de dente pela metade, Prozac, Frontal e Rivotril. Tudo dela para ele usar. Suportar. Não mais. Ansiedade, pânico, explosão e catarse. Toma remédio que passa. Purificação, evacuação, purgação. Terror do homem rústico que passou da boa para a má estrela. Iria comer seus frutos, recolhidos do pátio da escola, com outros heróis como ele. Só. Suportou mais do que cabia.

Agressões, gritos. Ouviu o que não queria. Talvez fosse melhor ter olhos de Édipo a correr o risco de vê-la com outro, ou talvez fosse mais simples trocar o colchão. Já era tarde. Perderam o retorno numa viela de muros caminhando em linhas avessas.

Saiu com um estalo metálico e um tremor no punho deixando o amor fumegante no cinzeiro. Sumiu, largando no caminho um rastro de horror e calda vermelha que ninguém teve coragem de seguir para saber onde ia dar.

domingo, 4 de março de 2012

CONTRASTE DE BRANCO NO BRANCO

Pânico eufórico inflava os pulmões. A ansiedade tomava conta do peito e a respiração afundava até os pés. Explosão de luzes. O mundo em slow-motion.

Era estranho como naquele momento os olhos funcionavam defeituosamente voltados para os detalhes. Eram incapazes de olhar uma paisagem sem picotá-la em tiras de minúcias.

Não queria saber da casa, procurava sempre a porta dos fundos. Imaginava que talvez os anjos, se realmente existissem, teriam uma posição melhor para registrar história. Tomada de um ângulo que ninguém havia experimentando antes. Inovação. Proteção. Fuga.

Perturbava-se com a maioria das pessoas que não conseguiam entender o contraste do branco no branco, com os vultos bizarros cujas caras derretiam e com animais que maltratam animais.

Um dragão que entrava e saía do mar e carregava com ele flores, um peixe e um demônio do bem, cuja máscara espantava os maus espíritos, faziam parte do protetor de sua existência, ele mesmo.

O horizonte avermelhado dava ânsia, de que não sabia. Viu fantasmas e recebeu ordens para sentar-se direito e acompanhar o encontro do mar com céu. Sacrificou sua sanidade para viajar e teve medo de nunca mais voltar.

Precisava de conforto. Deitou-se no colo dela de baixo para cima, sentiu o aconchego de seus seios quentes contra o rosto. Tentou abraçá-la pelo sexo mas não pode. Suas vontades haviam sido suprimidas. Carinho na têmpora e uma lágrima pingada.

A respiração encurtou, faltou espaço no peito, o abraço que já não havia foi ficando cada vez mais apertado, soluço viscoso e gosto de ferro na boca. Um suspiro e o ar não veio. Olhou o brilho do adeus e o desapontamento. Pediu socorro e ela não podia fazer nada, a não ser se despedir trancando para dentro a psicose fatal daquela sala branca.