sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

SEDAÇÃO



Bastavam quatro ou cinco gotas e ele sabia exatamente o que aconteceria a seguir. Viajar. Seriam alguns minutos de prazer intenso. Uma sensação de paz e tranqüilidade. Êxtase profundo. Era esperar bater. Poucas voltas do ponteiro dos segundos. O universo mudava de cor. Cores espocando diante dos olhos de uma forma que beira a diversão. Tudo é maravilhoso. A sensação de expirar todos os erros, encaixotar todos os pregos. O bem estar absoluto era possível uma vez ao dia, mas poderia ser viciante. Também não se permitiria abusar das gotas por mais que um par de calendários. Era conforto químico temporário. Para alguns perigoso. Besteira! É um químico antigo, usado por milhares de pessoas ao redor do mundo buscando uma única sensação. Sedação. Aproveite o vôo. Um alívio. Paz sintetizada. Colírio. Conforto quase imediato. Lenitivo, era a melhor sensação a cada vinte e quatro horas. Desafogo. Bem estar branco. A respiração diminuía junto com os olhos. A pressão também. O coração dançava Bob Marley. As luzes se reduzindo, um sorriso de soslaio ficou ensaiado e enfim ele pode dormir graças a altas doses de clonazepam que matavam com sabor doce, deliciosamente, todos os seus dias de ansiedade.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

TAPA NA CARA

Ele levantou a mão e baixou com força, batendo de lado. Ouviu-se até um estalo . O som oco dava certeza que alguma coisa tinha quebrado. Foi uma bela porrada. Uma das pessoas que estavam em volta, espantado e quase entusiasmado disse:

- Nossa! Deu na cara dela! 

Ela do lado de lá não deixou por menos. Levantou a mão com ferocidade e usou o braço como alavanca num movimento semi circular. Acertou em cheio. Aquela coisa branca e redonda que estava vindo na direção dela voltou para onde estava.

Por uma fração de segundo ele ficou espantado. Como ela poderia ter revidado? Devolvido? Como ela tinha feito aquilo depois da pancada que ele tinha descido. Era mesmo de causar perturbação. Mas não era hora de parar por ali. Ele tinha que bater mais forte, e assim fez. Silêncio no público. Espanto geral com a violência. Susto.

Friamente ela acompanhou o movimento de cada músculo, a trajetória da mão se aproximando. A força, a raiva. As veias do antebraço vascularizadas, saltadas pela pressão do sangue. Mas para surpresa de todos, do jeito que ela recebeu aquele coice, ela devolveu com mais força, com mais raiva, com mais intensidade. Com os dentes cerrados e fazendo um esforço supremo, como talvez jamais tivesse feito na vida.

Acertou em cheio, e o silêncio foi ainda mais sepulcral. O que estava acontecendo ali era um absurdo. Uma disputa sem sentido.

Eis que a bolinha acerta a quina, e respinga de uma forma impossível de rebater. O público em volta da mesa formado unicamente pelos amigos do casal também não acredita. Ela tinha ganho pela primeira vez, em sete anos de casados, uma partida de pingue-pongue.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

BOMBA RELÓGIO

Pensou num suco de abacaxi de saco para inundar a garganta seca da boca com medo. Chegava a estalar. Sentiu os cabelos e os pelos brancos espalhados pelo corpo. Quarenta e dois verões depois jogou a idade na mochila pela primeira vez. Pesou.

Acabara de voltar do mesmo boteco onde encontrava a mesma cerveja, as mesmas conversas de homem, o mesmo sanduíche e as mesmas piadas. Os mesmos amigos. Faltavam alguns. Susto. Era difícil olhar as partidas. Era impossível viver sem as permanências.

Sentado no vaso da privada olhou no espelho atrás da porta. A cara tinha derretido. Respirou fundo e pensou na pressão. Quase explodiu outro dia que nem panela de feijão. Ia virar mais um nome na lista dos idos.

A noite estava pura, desenhada com betume e pó de vidro. Precisava soprar fumaça para parecer a cidade e para fugir do medo. Estava encagaçado. Na noite anterior achou que iria. Ficou, e foi tomar cerveja com os amigos já que não sabia ainda quanto tempo o seu relógio tinha.

A bomba do peito podia explodir. Precisava comprar um pouco de calma. Tentou chocolate na loja do tem tudo no posto de gasolina da esquina. Não tinha troco. Resolveu rolar as ruas da cidade para matar a saudade dela, que sempre fazia isso junto. Sem ela o mundo dele era um círculo sem centro. Orquestra sem maestro. Máquina sem filme.

Era seu jeito esquisito de sentir saudade.

Comeu o melhor pão com manteiga do universo. Tomou a melhor xícara de café morno que poderia ser feita, e foi dormir rezando não sabia prá quem, mas como ela tinha pedido, talvez ajudasse a deixá-lo exatamente aqui, por muito tempo.

Deitou com a cara para o teto, entrelaçou as mãos no peito, respirou fundo e fechou os olhos.