quarta-feira, 25 de julho de 2012

HIPERMNÉSIA


Queria esquecer, não conseguia. Não por falta de vontade mas por patologia de memória. Aumentava a capacidade de recordar fatos que existiriam melhor se não existissem. Alteração metabólica ou stress de sentimento? A dor no peito não explicava.

Uma brisa fria soprava o corpo da noite e o céu negro comia a lua aos bocados. Sorriso do gato de Alice. Brilho intenso e fulgor singelo. Fitou o horizonte, que tinha desenho de tara, quase convidativo ao abandono absoluto. Nada o permitia esquecer de tudo. Queria as memórias de longe para escolher as que iriam permanecer. Podia abrir mão de todas para amenizar a angústia. Vivia o avesso de seu desejo.

Recordava o passado mais que presente vivo e exato. Evocava lembranças compulsivas e desnecessárias. Sintomas cognitivos de hipermnésia total e permanente. O ontem tinha nomes, datas, números e vontades de hoje. Em cada canto da visão suas lembranças. Nos casacos do armário, nos livros, filmes da prateleira e nas mesas de saquê, vinho e chá de hortelã que acompanhavam cigarros feitos a mão. Nas fotos clicadas no hipotálamo e no movimento lento do ir e vir dos dois em harmonia. Arco rígido do violino roçando as cordas do seu corpo. Escândalo da música e a música dos gemidos altos. Emoções, sexo, fome, sede e temperatura. Não podia esquecer. O tempo herdado não era passado.

Como tudo aquilo acontecia? De que forma ela se tornou permanente? Jogou no lixo e deletou tudo que podia na esperança de esquecer. Desesperou. Calma. Eram perguntas sem resposta, que poderiam se transformar numa luta vã, não fossem conscientemente não respondidas. Apenas o sentido, a vontade de ter e ver, e a natureza conjurando a favor da saudade. Estaria perdendo a sanidade?

Forçou-se a despedaçar seu eu, deixando ali a brisa fria e a depravação dos olhos que misturavam afeto, carinho, paixão, fascínio, tesão, confidência, respeito, admiração e dependência. Todos obstinados a fazê-lo doente, não esquecer nem por um segundo.

7 comentários:

  1. Uau!! Excelente como todos... Parabéns =)

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  2. Mais um excelente texto, esse primeiro paragrafo me lembra a mim mesmo quem não tem vontade de esquecer algo e não consegue. Parabéns Marcello.

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  3. Como esquecer algo que já está colado em nós? Impossível às vezes. :)

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  4. Lindo,EMOCIONANTE e como SEMPRE VC ARRASA!:-))

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  5. Vc como sempre surpreendendo a cada novo post. Recordar é viver. Texto intenso, emocionante. Adorei.

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